Desenvolvimento em travas: a rigidez fiscal como limite estrutural
- The Left Chapter
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Brazilian National Congress, 2025 -- Agência Senado from Brasilia, Brazil, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons
By Marcelo Depieri
A partir da década de 1990, uma nova forma de desenvolvimento foi imposta para os países da América Latina. No Brasil, o modelo de industrialização baseado no desenvolvimentismo, que havia marcado a trajetória econômica do país entre 1930 e 1980, seria deixado para trás. A partir de então, as orientações para o crescimento econômico, o papel do Estado e a gestão das finanças públicas passariam a seguir uma lógica de inspiração liberal.
Um marco fundamental dessa transição foi o chamado Consenso de Washington, realizado em 1989 na capital dos Estados Unidos. Esse encontro reuniu técnicos em economia e desenvolvimento ligados ao governo norte-americano, além de representantes de instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Durante essa conferência, foram estabelecidos princípios que passaram a nortear as estratégias econômicas e de desenvolvimento dos países da América Latina. No que se refere à política fiscal, recomendava-se uma gestão orçamentária austera para garantir a estabilidade macroeconômica.
Foi a partir dessas bases do Consenso de Washington que as políticas econômicas no Brasil se orientaram, especialmente a partir do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), adotando uma abordagem centrada no ajuste fiscal, mesmo que inicialmente o governo não tenha obtido êxito no controle dos gastos públicos.
Essa orientação, contudo, não se limitou à adoção de medidas econômicas de curto prazo, mas foi incorporada de forma mais profunda ao ser institucionalizada no ordenamento jurídico do país, por meio de leis e marcos regulatórios que consolidaram os princípios da disciplina fiscal como fundamentos permanentes da gestão pública.
Um dos principais instrumentos dessa institucionalização foi a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Aprovada em 2000, ela impõe limites para gastos com pessoal, exige metas fiscais anuais e proíbe a criação de despesas permanentes sem previsão de receita correspondente. Além disso, essa lei chega até a criminalizar alguns descumprimentos de suas regras, podendo acarretar sanções administrativas, como restrições a transferências voluntárias entre os entes da Federação, além de responsabilizar política e penalmente, com base em outras legislações, condutas como ordenar despesas não autorizadas ou assumir obrigações sem respaldo financeiro.
A aprovação da LRF consolidou institucionalmente diretrizes que já vinham sendo adotadas na condução da política fiscal, como a implementação da política de metas de superávit primário iniciada em 1999, durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002). A LRF, portanto, veio para dar respaldo legal e permanente a esse modelo de disciplina fiscal centrado no controle rigoroso das contas públicas.
A institucionalização do controle das contas públicas e sua elevação a prioridade central da política fiscal foi mantida de forma contínua por todos os governos subsequentes, sem exceção – inclusive pelos mandatos de Lula (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) -, que, apesar da orientação progressista, e por ampliarem a participação do investimento público na economia, preservaram os compromissos com a responsabilidade fiscal.
O auge da rigidez fiscal se manifestou com a aprovação, em 2016, da Emenda Constitucional 95, a Lei do Teto de Gastos Públicos, logo após o golpe jurídico-parlamentar contra a então presidenta Dilma. Essa política foi aprovada durante o governo de Michel Temer e seguiu durante o governo de Jair Bolsonaro. Ela instituiu um modelo extremo de contenção fiscal ao congelar, por 20 anos, o total de despesas primárias do governo federal, permitindo sua correção apenas pela inflação do ano anterior. Tratou-se de uma política sem paralelo em outras economias do mundo, tanto pela sua duração quanto pela rigidez de seus critérios, desconsiderando o crescimento populacional, as mudanças nas demandas sociais e o próprio dinamismo da economia. Alguns gastos obrigatórios, como os da previdência, por exemplo, tendem a crescer acima da inflação, mas essa limitação impõe cortes significativos nas despesas discricionárias, afetando diretamente investimentos em áreas essenciais como saúde, educação e infraestrutura. Em casos mais drásticos, resultou na paralisação completa de políticas públicas, como o programa habitacional Minha Casa Minha Vida, no ano de 2017, evidenciando os impactos sociais profundos da adoção de um regime fiscal tão restritivo.
Se a manutenção da rigidez da política fiscal não atende as necessidades de nossos povos, como ela se legitima perante a sociedade e qual é o seu papel? A rigidez da política fiscal se apoia em teorias econômicas que defendem ser o equilíbrio das contas públicas uma condição essencial para a realização de investimentos e para a atração de capital estrangeiro, elementos que impulsionariam o crescimento econômico. Esse argumento ganha força na sociedade ao se aproximar da lógica das finanças domésticas, segundo a qual não se deve gastar mais do que se ganha e é preciso poupar para poder investir no futuro — uma comparação que é bastante intuitiva e facilmente compreensível à população. No entanto, essa analogia simplifica excessivamente a realidade, pois a economia pública opera de forma distinta da economia do lar. Quando bem planejados, investimentos estatais – como políticas de transferência de renda ou obras de infraestrutura – podem dinamizar a economia, gerar empregos e aumentar a arrecadação no médio prazo, contribuindo justamente para o equilíbrio fiscal que se busca preservar.
Para além de sua legitimação, é importante observar o papel que a rigidez da política fiscal cumpre. Ela atua para limitar os gastos públicos e buscar constantemente a geração de superávits primários — ou seja, saldos positivos entre a arrecadação e as despesas, desconsiderando as financeiras. Esse superávit, na prática, é direcionado prioritariamente ao atendimento dos interesses do capital portador de juros, pois se destina ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Trata-se, portanto, de uma engrenagem que garante a remuneração contínua dos credores do Estado, concentrando recursos que poderiam ser destinados a políticas públicas e investimentos sociais.
Além disso, a rigidez fiscal exerce um papel de controle social, ao restringir a capacidade do Estado de expandir a oferta de serviços públicos e de efetivar direitos sociais, como saúde, educação, previdência e assistência social. Seguir estritamente as regras fiscais não apenas impede avanços nessas áreas, como pode significar retrocessos importantes. Um exemplo claro ocorreu em 2023, no terceiro mandato do governo Lula (2023-2026), quando, sob a pressão de manter o equilíbrio fiscal, o governo estabeleceu um limite de 2,5% para o aumento real do salário mínimo, independentemente do crescimento do PIB – uma medida que, na prática, freia a valorização do trabalho e a ampliação da renda dos mais pobres. Essa medida afetou outros direitos sociais, pois é o salário mínimo que baliza as pensões e aposentadorias e benefícios como o Benefício de Prestação Continuada, o BPC, recebido por pessoas maiores de 65 anos de baixa renda que não têm direito à aposentadoria e para pessoas com deficiência.
Essa foi a saída do governo para conseguir atender as regras do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), aprovado em 2023, que, embora represente uma suavização em relação à rigidez extrema do Teto de Gastos Públicos, ainda impõe importantes limitações à política fiscal. O NAF substitui o congelamento dos gastos por uma regra de crescimento vinculado à arrecadação, permitindo que as despesas primárias cresçam até 70% do aumento da receita primária do ano anterior. No entanto, esse crescimento está limitado a um teto real de 2,5% ao ano, mesmo que a arrecadação cresça acima disso. Além disso, o novo regime mantém metas de superávit primário bastante austeras.
Por fim, essa rigidez na política fiscal que acompanha o país desde o início da década de 1990 atua como um obstáculo estrutural ao desenvolvimento autônomo do país, ao dificultar a implementação de políticas robustas de investimento público em áreas estratégicas como infraestrutura, ciência e tecnologia e em programas de reindustrialização. Com isso, reforça-se um modelo de dependência econômica e tecnológica, em que o país permanece subordinado a dinâmicas externas e sem instrumentos suficientes para construir um projeto soberano de desenvolvimento.
Diante desse cenário, torna-se indispensável, para que se possa conceber um projeto de desenvolvimento efetivo para o Brasil e para grande parte dos países do Sul Global, retomar o controle soberano sobre a política fiscal, de modo que ela deixe de ser um instrumento de submissão aos interesses do capital financeiro e passe a servir diretamente ao bem-estar da população. Isso significa flexibilizar as amarras que hoje limitam os investimentos públicos e recolocar a política fiscal como ferramenta estratégica para a promoção da justiça social, da redução das desigualdades e da construção de economias mais resilientes e voltadas às necessidades reais dos seus povos.
Marcelo Depieri é economista, mestre em Economia Política e Doutor em Ciências Sociais, pesquisador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e professor de Economia na Universidade Paulista (Unip). Autor dos livros Para entender a economia brasileira: as questões em seu devido lugar (2024) e Pandemias, Crise e Capitalismo (2021), ambos pela Editora Expressão Popular.
Este artigo foi produzido pela Globetrotter
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